Vazio e Libertação
Por
José Barreno
Dao Fa Zi Ran
道法自然
O Dao segue-se a si mesmo
LaoZi fala-nos do autocentramento como a Via
para a libertação. Esta liberdade é total e consiste na aceitação, ou antes, na
autoaceitação, que é possível ser sem ser, ou seja, que apesar de aqui estarmos
e cumprirmos a existência formal de acordo com o Destino (命Mìng), o ser pode cumprir a sua existência sem contudo estar “acorrentado”
às lógicas existenciais do mundo, ou da vida secular. Aliás, daí a ênfase de
LaoZi no eu, ou na autossuficiência do eu, ao longo de todo o Dao De Jing. A figura
do sábio é usada sempre neste sentido, estabelecendo uma relação com o mundo
que assenta no desapego e na humildade, como forma de obter o Poder - 得德 Dé Dé - ou a capacidade virtuosa de se
desapegar das questões mundanas que são em si mesmas fontes de separação e,
portanto, fontes de sofrimento.
Por isso, o taoista, ou o sábio, segue o Dao,
que é auto gerado e autossuficiente, como exemplo de libertação plena e origem
de toda a existência, fundamentando deste modo a originalidade da sua natureza
intrínseca na mais absoluta liberdade porque vazia de qualquer apego ou coisa.
Deste modo, sem nada fazer - ou autossuficiência -, sem nada saber - ou
autoconhecimento -, sem ação - ou livre de ação no sentido intencionado -,
porque a natureza é, foi, e será sempre presente e, portanto, a ela retornando,
eliminando a separação que a estratificação imposta pelos conceitos de
diferença e valor que a mente humana - Rén Xīn 人心 - utiliza, pode voltar à Unidade original, que consiste na realização
do que é anterior e indiviso, ou seja, um só campo de Qi denominado Yī Qì 一炁, sem separação, formando um campo de Qi compacto e indiferenciado,
funcionando em uníssono, assim produzindo a partir do Céu anterior - Xiān Tiān先 天- as condições que culminarão na materialização Universal, denominado
de Céu posterior – Hòu Tiān 后 天 -, como uma sinfonia perfeitamente afinada,
apesar dos seus múltiplos instrumentos. A isto se denomina Zì Rán 自然, ou a natureza própria no sentido em que já a possuímos de
forma inata e que apenas necessita de ser ativada, retornando à memória
Ancestral, que se tem mantido adormecida por efeito da ativação da mente
humana – Rén Xīn 人 心 - após o nascimento, em detrimento da mente
verdadeira ou do Dao - Dào Xīn 道 心 -.
Esta mente verdadeira - Dào Xīn 道 心 - é vazia em si mesma de conceitos e portanto plena de potencial de
realização - Néng Wéi能 为-, visto que ao nada ser, pode tudo ser. Assim, o vazio não é para
LaoZi dotado de uma inexistência, antes pelo contrário é algo muito concreto,
pelo menos como ação prática, ou seja, alguém querer estar vazio, sendo que,
como é referido no Clássico, o único desejo possível é estar vazio de desejo.
LaoZi refere 3 tipos de “vazio”, sendo eles Wú 無-nada, Xū 虚-vazio e Kòng 空-esvaziado. Em certo sentido, podemos atribuir a estes vazios
três estágios de plenitude ou realização, desde o Esvaziar a mente (空), ajudados por um bom movimento respiratório, expirando completamente
o ar por forma a, agora Vazios (虚), podermos aspirar a Nada (無) alcançar.
Em termos práticos é possível entender o
conceito de 空 (Kōng-esvaziar) como a atitude/ação de
voluntariamente utilizar a habilidade para esvaziar a mente de preocupações, (pré)conceitos
e ações condicionadas que limitam a existência aqui, no corpo - Shēn身. Esta habilidade, LaoZi designa-a como Dé 德. Normalmente traduzida
como Virtude, também pode ser entendida como Força e/ou Poder. Assim,
usar Dé 德, pode querer dizer funcionar de acordo com os Valores Supremos que se
encontram acima da simples moral, tais como, dar a vida e preservá-la,
governá-la sem nada nem ninguém a ela submeter e realizar obra sem nada reter
para si, obtendo assim o Poder sobre o Mistério (Xuán Dé 玄德)[1]. Este
mistério é o Um “enquanto princípio de unidade do mundo, unidade de si mesmo,
consigo mesmo e com o mundo”[2].
Assim, esvaziar é essencial para aquele que
quer progredir no Caminho, aproveitando a sua passagem nesta existência e neste
corpo, cultivando a Virtude (Dé Shēn 德身), de forma excelente, superando o Yīn qì 阴气do plano, que dia após dia naturalmente afunda aqueles que não sabem o
quê nem como fazer. Portanto, possuir a vantagem e o mérito, realizado em
existências passadas, de estar nesta vida num tempo-espaço onde se pode estudar
o Dao, é fator fulcral para se libertar do plano de negatividade e alternância
que aqui prende há já muitos éons, para ascender ao que é luminoso, suave e
constante e que pode ser chamado de Xū 虚.
Este vazio – 虚 - é a essência
original do Qi Universal, que continuamente age sobre a nossa existência na
forma dos raios cósmicos que continuamente atingem a superfície do planeta, gerando
e mantendo a vida na forma, tal como a conhecemos, desde o início dos tempos. É
nesta ressonância universal aliás que o taoista busca enquadrar-se, utilizando
para isso o conhecimento expresso nas suas práticas e que lhe é transmitido
pela linhagem a que pertence, como forma de ressoar com o universo e assim
poder evoluir até à plena realização que é a libertação deste plano
dimensional. O clássico taoista de alquimia interna, Wuzhen pian, escrito no
séc. 11 por Zhang Bo Duan diz a este propósito :
Dào
Zì Xū Wú Shēng Yī Qì 道 自虚 无 生 一 炁
Por ação do Vazio o Dao gera naturalmente o
Qi uno
Como já referido, Yī Qì 一 炁[3]é o campo único de Qi que antecede a criação do Universo, ou céu
anterior. A divinização bem como o conceito filosófico de Sopro Universal do Qi
têm aqui a sua raiz, sendo a divindade que lhe corresponde Tài Yī 太一, ou a Suprema Unidade, que é mais um nome por que é conhecido o Dao. A
escritura que explica a cosmogénese assente em Tài Yī, denomina-se Tài Yī Shēng Shuǐ 太一生水 e data da dinastia Qin (séc.III a.e.a.). Neste contexto, é referido
que Yī Qì é o Qì de Tài Yī, ou seja, do Dao, e que o corpo de Tài Yī é o Céu Anterior. O He Sheng Gong, o mais famoso comentário ao Dao De
Jing, refere que o Qi é a continuação do Dao no plano substancial, o que
oferece sustentação ao aqui exposto, como sendo o Céu Anterior o estado latente
que possui inatamente as condições ou o potencial de realização para a aventura
universal que, desde o Big Bang, continua a evoluir expandindo-se dentro
(internamente) do próprio vazio. Portanto, Xū 虚, tem interno e é exatamente essa qualidade que permite a geração e
expansão universal, numa “teia celestial vasta de onde nada escapa por entre
os fios da sua rede”, como nos descreve Lao Zi no capítulo 73 do Dao De
Jing:
Tiān Wǎng Huī Huī, Shū Ér Bù Shī 天網恢恢, 踈而不失.
Xū 虚
pode assim ser entendido como
a fonte da vida, que estabelece, inclusive, os seis polos pelos quais
interpretamos tridimensionalmente a realidade e que são: Céu-Terra, Sul-Norte,
Este-Oeste, expressos no estilo de Alquimia Interna dos 6 movimentos das
Três Purezas, San Qing Liù Xíng Liàn Shēng Gōng 三清六行炼生功. Neste
estilo são gerados os 6 vazios Liù Xū 六虚, por
forma a gerar Qi Original que regenera todas as dimensões da existência e
permite estabelecer as condições para, numa fase mais adiantada da prática da Alquimia
Interna - Nèidān 内丹-, o praticante possa refinar o
espírito e alcançar o Vazio: Liàn Shén Huán Xū 炼神还虚.
Alcançar o Vazio significa, como disse Lie Zi, “esquecer que se esquece”,
não havendo nada mais que prenda ou atrase o aparecimento do corpo espiritual
do praticante, assim liberto do seu corpo mental, que é também o seu corpo
ilusório. Daqui, deste eixo vazio Wújí 無極 que é nada, desvela-se o Dào 道.
[1] Remete para Dao De Jing, Lao Zi, cap. 10.
[2] Dao De Jing, Lao Zi, Tradução do chinês, notas e comentário de
Cláudia Ribeiro, Publicações Europa-América, 2004.
[3] Este caracter de Qì 炁 remete especificamente para o Qì Uno do Céu
Anterior. É também chamado de Qì Taoista, Qì Violeta ou Qì Púrpura. Ver o artigo
“Acerca do Qì” do Mestre José Barreno para mais informações acerca da origem do
caracter e seus significados.
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