Pequena Introdução
ao Capítulo I do Huang Di NeiJing Su Wen:
Shang Gu Tian
Zhen Lun 上古天真論
Da
medicina dos tempos imemoriais
Por José Barreno
Para se começar a estudar medicina, deve-se começar pelo
estudo dos clássicos médicos. O Huang Di Nei Jing 黃帝内經, comumente conhecido como o clássico
da medicina interna do Imperador Amarelo, é a primeira obra-prima dentro desta
classificação literária e a sua suposta autoria atribuída a Huang Di 黃帝, o
imperador amarelo e o ancestral da civilização chinesa e do daoismo.
Por mais de 2000 anos, este Clássico cultivou gerações
que o usaram não só para governar, mas também para tratar as doenças que
afetaram a humanidade, ao longo dos milénios.
Wang Bing, um médico famoso da dinastia Tang e cuja
recompilação do clássico é aquela que mais utilizamos no Ocidente, dizia dele
que: “É o ancestral do taoísmo e o começo da prevenção da saúde.” Portanto, era
também uma escritura usada para veicular o Dao. Kong Anguo[1]
dizia no prefácio do Shang Shu, O Livro dos Documentos, o seguinte:
“Os textos de Fuxi, o Yi Jing, Shen Nong, o Ben Cao Jing
e Huang Di, o Nei Jing, são apelidados as 3 cavernas e eles falam sobre o Dao.”
O Huang Di Nei Jing é composto por duas partes: “Questões
simples, Su Wen 素問” e “o
Eixo espiritual, Ling Shu 靈樞”,
um conjunto formado por 18 rolos (Juan 卷).
Desde Wang Bing, da dinastia Tang, que organizou,
suplementou e comentou a escritura, muitos outros puderam ter acesso às
mensagens ocultas do Tratado de Medicina Interna do Imperador Amarelo. Porém,
devido à interrupção do ensino dos clássicos durante várias gerações na China
por força da intervenção do Estado ao longo dos séculos e à chegada dos métodos
médicos ocidentais à China e ao seu ensinamento, o número de pessoas que
atualmente estudam os clássicos diminuiu muito, remetendo para um canto obscuro
este tipo de literatura e ensino.
Felizmente que, nos dias de hoje, alguns académicos
começam a ressuscitar este interesse através do seu estudo e publicações a ele
referentes, como artigos e livros, que vêm expor o brilhantismo do pensamento
aí patente, mas também a sua utilidade enquanto instrumento de aprendizagem e
aplicação prática no dia a dia clínico.
Por exemplo, no capítulo um do Su Wen, o Tema é Dào Shēng道生[2], ou as práticas para a saúde e longevidade que compreendem o Dao Yin, o Tǔ Nà, e que permitem voltar a conhecer internamente o corpo nutrindo com o qi duplo do YinYang e desse modo poder facilmente ligá-lo ao céu vibrando em conjunto com o universo, com o Yin Yang, com as 4 estações e realizar longevidade e capacidade para ver para além do óbvio, penetrando, desse modo, o mistério.
O Dào Shēng incorpora assim o princípio “Tiān
Rén Hé Yī”(天人合一),
ou “Céu e Humanidade são uma só unidade”, baseado na “comunicação recíproca
entre o céu e o humano”, ou “Tiān rén Xiāng Yìng” (天人相應) e,
dessa forma, previne a doença “Zhì wèi Bìng”(治未病), visto posicionar o humano em
linha com o Dao e a sua operação, levando-o ao encontro da saúde e longevidade.
Sem esta compreensão e ação, restará apenas sofrimento. Isto é o fundamento que
permite preservar a saúde, usando como ferramenta o Yǎng
Shēng
(養生), ou
as práticas para a saúde e longevidade.
Porém, tal como apontou Sūn Sīmiǎo,
o rei da medicina[3],
“saber medicina sem estudar o Yì[4] 易não é
suficiente”. Compreender de forma aprofundada o Yin e o Yang e os seus modos
relacionais, os seus movimentos de aumento e diminuição, bem como o Dao e o seu
vazio é fundamental para a evolução na compreensão dos fenómenos e, portanto,
da medicina que o Imperador Amarelo expõe e ensina.
O Yin e o Yang foi o modo que os nossos ancestrais
chineses encontraram para estudar e sistematizar a natureza, conseguindo gerar um
meio pelo qual a relação entre objetos e fenómenos era e é possível de
explicar. Explicar leva ao entendimento, o entendimento leva à clareza e,
portanto, à compreensão, permitindo assim um posicionamento perante a natureza
e os seus fenómenos que facilita a prevenção dos desastres e assim, também da
doença. Como o clássico mostra, “o entendimento acerca do Yin Yang é o meio
para resolver a confusão, ou como acordar do estado de embriaguez”. De facto, a
natureza humana funciona de acordo com o que podemos chamar de “Dao circular”, Yuán
Dào (圓道)[5],
patente na circularidade do qi, caracterizado pelos seus movimentos de subida e
descida, interiorização e exteriorização, que observamos na continuidade entre
o dia e a noite, e de novo o dia. Este é o movimento do Yī Qì
(一炁) ou a
sua circulação e fluidez, expresso na fórmula Yī Qì Zhōu
Liú (一炁周流) e proposto
pela primeira vez por Huang Yuan Yu na dinastia Qing, que considerava como
fator primordial a função “do Qi central ou Zhong qi (中氣)” como um eixo, o qual todos os
outros utilizam e no qual todos os outros acabam incluídos pois, “ele desce
após ter ascendido ao seu máximo e sobe após ter descido completamente, como um
anel sem fim, podendo transformar tudo...” (Pi wei lun)[6].
Deste modo, o movimento circular acaba por ser a circulação do qi central que
pode igualmente ser apelidado de qi circular e assim, ser o modelo da
circulação geral do qi no universo.
O Lu Shi Chun Qiu. Yuan Dao[7] ,
diz: “o qi... sobe e desce, ele move-se em círculo sem cessar, de tal modo que
o Dao do céu é circular”.
Por isso, enquanto o qi circular ele produzirá vida sem
cessar, fazendo germinar e transformar os Dez mil qi, gerando a oportunidade
para a aventura da vida acontecer.
No Suwen, Wuchang Zheng Da Lun, diz: “... Se o qi da
Terra é excessivo, a Chuva será abundante, a humidade espalha-se, a secura
declina e a sua transformação será redonda...”.
Deste modo, no corpo esta circularidade também acontece.
Por exemplo, a forma da cabeça corresponde à circularidade do céu. Diz o Ling
Shu, Xieke: “o céu é redondo... Logo a cabeça é redonda...”. A circularidade
nos vasos, constituindo um sem fim, onde circulam qi e sangue, Ying e Wei, tudo
de acordo com a circularidade do Dao.
Assim, homem e universo respondem ao mesmo Qi, e portanto
tudo “abaixo do céu”, possui a propriedade de circular e desenvolver sem
cessar.
No corpo humano este qi circular corresponde ao
baço-estômago, a Terra como centro e cujo qi está intimamente ligado à nutrição.
Por isso a regra terapêutica de “primeiro regular o
centro”, visto que o seu equilíbrio permite que tudo o resto possa também
encontrar o seu. Além disso, o centro é a fonte de qi, sangue e jing, ying e wei,
além de ser o fundamento do céu posterior.
Quanto ao imperador amarelo ele é Xuān Yuán
Huáng Dì[8], ou
literalmente, o mais elevado governante, o Imperador Amarelo. No capítulo um do
clássico diz:” na antiguidade havia o imperador amarelo” ( Xi zai Huang Di昔在黃帝) que,
”logo após o seu nascimento já se mostrava espirituoso (Sheng er Shen Ling 生而神靈)”. Dotado de grande inteligência espiritual, possuía assim
uma ligação natural a tudo no mundo. Diz ainda ”muito frágil já falava (ruo er
neng yan弱而能言)”。 Frágil,
na língua chinesa ruo (弱),
era a designação dada na antiguidade aos bebés até aos 100 dias de vida, o que
demonstra a excepcionalidade atribuída ao Imperador Amarelo que, com menos de
três meses já produzia discurso. E continua dizendo, “jovem era desenvolvido e lépido
no pensar (you er xun qi幼而徇齊)”
o que significa que desde muito novo era politicamente hábil, íntegro e
ponderado. Aprendeu com Mestres muito elevados como Qi Bo e Guang Cheng Zi[9], uma
encarnação de Tai Shang Lao Jun, com o qual aprendeu após penitência, as artes
da imortalidade em Xiao Yao Guan, na montanha Kong Tong. Por isso a mesma frase,
que dissecamos acima, termina dizendo que, “após se ter realizado ascendeu aos
céus( Cheng er deng tian成而登天)”.
Disse Qi Bo: “as pessoas da alta antiguidade que
conheciam o Dao, usavam a lei do Yin Yang e faziam-no utilizando o Shù Shù[10].
Portanto, os homens da alta antiguidade num tempo anterior à
escrita observavam as leis da natureza percebendo assim que tudo funcionava
de acordo com uma matriz que alternava como dia noite, o frio e o quente, o
interno e o externo. Dentro deste padrão sucedem-se dinâmicas que regulam a
transformação de um no outro sem caráter repentista. Para o estudo destas
dinâmicas internas estes ancestrais utilizaram um processo assente em técnicas
e números chamado de Shù Shù. O livro que fundamenta a teoria do YinYang é o Yi
Jing, o clássico das transformações. Mais tarde este Tema é aproveitado por Lao
Zi no Dao De Jing para explicar o relacionamento entre a natureza e a sociedade
humana oferecendo um padrão baseado no modo de funcionamento do próprio
universo. Assim, o Yin Yang funciona, de acordo com o professor BaoShan Ma, no
seu livro “Cosmologia e lógica no Dao da mudança”, não como características
essenciais mas seres-onto-geradores não substantivos, visto que vão e
vêm com os fenómenos tangíveis.
A escola taoista estuda-o tal como era praticado na alta
antiguidade, ou seja, utilizando um processo que consistia essencialmente no
uso da astronomia, calendário e numerologia, por forma a equilibrar e
harmonizar. A harmonia consiste então na capacidade de prever o futuro e desse
modo tal como refere o clássico, viver bem mais do que 100 anos, ou
dois JiaZi 甲子[11] (
Tiannian=2x60=120 anos).
Por isso o
Clássico diz, em jeito de conselho:
“Jing Shen Nei
Shou, Bing An Cong Lai (精神内守,病安從來)” ou, “Se a essência espiritual estiver
internamente protegida, como pode surgir a doença?” Wang Bing explica:” se
alguém segue o Dao com toda a honestidade, consegue preservar internamente a
essência…assim, o mecanismo interno encontra-se aquietado…e deste modo, desejos
e afectos cessam, o certo e o errado são a continuação de um e do outro. Por
isso, o corpo pode sentir cansaço, mas não se desgasta”, visto que se encontra
esvaziado de tudo, despido de tudo o que possa causar confusão e caos, como o
que é provocado pelas coisas e os desejos, de acordo com a expressão “Absoluto Vazio
(Xu Wu 虛無)” que,
como atrás referido remete para a libertação de tudo o que possa acarretar
apego. No tempo a que o clássico se refere o Homem não possuía muita coisa e as
suas atribulações eram poucas, estando
essencialmente focadas na obtenção de alimento e um local seguro onde
descansar, desse modo, tirando isso não era incomodado com outros assuntos que
o pudessem destabilizar, ao contrario da existência nos tempos modernos em que
o cidadão continuamente encontra motivos de preocupação e desejo, levando a que
a sua mente não encontre paz e portanto gere condições que alterem o seu estado
de espirito e conduzam à doença. Retornar a uma existência simples e desapegada
é uma receita para se manter a vitalidade e alcançar longevidade, vivendo com
saúde.
©José Barreno, 2023
[1] Kong
Anguo (156 a.e.a,-74 a.e.a.), académico confucionista e oficial do governo na Dinastia
Han Ocidental. Escreveu o Shangshu kongshi Zhuan, uma compilação e
comentário ao velho texto do Shangshu, o Livros dos Documentos, um dos
Cinco Clássicos da literatura chinesa antiga.
[2] Dào
Shēng,
literalmente o Caminho da Existência, ou o Dao existencial, no sentido da vida
no corpo físico. Cf. Chinese
Classics Colection: Yellow Emperors Canon of Internal Medicine, por Zhao
Weisheng, Ed.Jilin University Press(2021).
[3]
Sūn
Sīmiǎo - médico
escritor da dinastia Sui e Tang (581 e.a.- 682e.a.). No Daoismo
considerado o Rei da medicina.
[4] Yì-
diminuitivo de Yì jing 易經, o
Clássico das transformações
[5] Dao
Circular, cf. Huang Di Nei Jing Yuan Jie, de Zhao Guohui.
[6] Pí wèi lùn
脾胃論/ Tratado do baço-estômago por Li Gao, dinastia Jin (1180-1251)
[7] As
primaveras e outonos de Lu. O Dao circular.
[8] Xuān
Yuán Huángdì 軒轅黃帝- Titulo pessoal atribuido a Huángdì, o Imperador Amarelo
[9]
Guǎng
Chéng Zĭ
廣成子- uma
encarnação de Tai Shang Lao Jun, uma das três Purezas ( San Qing 三清), que
representam o topo do panteão daoista. De acordo com o filósofo daoista Zhuang
Zi, o Imperador Amarelo procurou ensinamento junto de Guǎng Chéng Zĭ.
[10] Shù Shù-
lit. Técnicas e números: Artes fundadas na observação da ordem natural e das
suas leis expressas em números
[11] JiǎZĭ 甲子 corresponde ao primeiro ano ou termo
do ciclo sexagenário. Por extensão, é também o nome atríbuido a todo o ciclo
sexagenário (60 anos, meses, dias). Composto pelo tronco celestial Jia 甲e pelo ramo terreno Zi 子 (GānZhī),
representa simultaneamente o início e o fim.
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